segunda-feira, 15 de outubro de 2001

Férias de sonho em Cabo Verde


O meu destino preferido não era nem de perto nem de longe Cabo Verde, mas lá fui. O vôo foi de noite, tardíssimo – ninguém se lembra de apanhar um avião às 2 da manhã – a essa hora apetece tudo menos andar de avião. Bom, voar já não digo, mas ...enfim! Depois das formalidades iniciais, aí estava eu, com 8 dias de casado e a olhar para uma loira que de longe parecia um espanto, na sala de embarque. De frente para mim sentou-se, de propósito ou não, o seu companheiro de viagem. Comecei a olhar bem para ele, que me parecia alguém conhecido. Assim baixinho, a minha namorada – nessa altura ainda não estava habituado à nova terminologia oficial “Esposa” – diz-me que se tratava de um modelo e apresentador de televisão português, casado com uma modelo austríaca – a tal loura. De perto não era assim tão bonita, mas pronto, iam connosco para Cabo Verde. Isso estava a fazer-me pensar, para contrariar a minha pequenez de espirito e confirmar a teoria da minha namorada, que afinal aquilo não deveria ser assim tão mau, pois se eles também iam – preconceitos estúpidos! Ao contrário do que o meu amigo mecânico de aviões me havia dito sobre os TACV – Transportes Aéreos de Cabo Verde, o tal do aviãozito até era normal – ao que parecia, tratava-se de um MD 80 – uma sigla que deixava antever uma máquina infernal, daquelas do tipo que os comentadores das provas de Formula 1 ao domingo na hora do almoço descrevem em pormenor. Cheio de sono, lá tentei meter o meu metro-e-oitenta-e-tal numa cadeira minúscula e acomodar-me o melhor que podia. Ao nosso lado lá iam os dois “pombinhos famosos”.


Chegados ao “Aeroporto Internacional do Sal”, uma verdadeira infra-estrutura aeroportuária com fortes semelhanças com o Pavilhão do Grupo Desportivo da Quimigal, esperava-nos uma multidão de locais que como se calcula não estavam nada preocupados com a hora do voo. Lá pelas 4 e tal da manhã, ali estavam eles a disputar um lugar na linha da frente da cancela por onde saíam os recém-chegados turistas. E tudo para quê? Para o que der dinheiro! E mais nada! Desde propostas simples como carregar a mala, até boleia, quarto, carro, e sei lá mais o quê, aqueles amigos gritavam quanto podiam para nos “caçar”. No meio deles, um rapaz assim mais calmo esperava que nos conseguíssemos desenfiar do meio deles para nos mostrar um papelinho escrito à mão com o nome da operadora. Bom, foi uma visão! Eu que já não ia de vontade, cheio de sono e danado por não ter conseguido dormir na cadeirinha que mais parecia de castigo, ter de sacudir os braços para me largarem e ter de arrancar das mãos de um daqueles miudos a minha própria mala, quando vi o tal do papelinho, ui...que alivio. Entrámos para uma iáce – a tradução para Crioulo do modelo Hi-Ace da Toyota, e lá fomos para o Hotel. Como a carrinha já levava lotação esgotada, as malas foram colocadas num pequeno atrelado, do tipo daqueles que de vez em quando passam por nós com cães a sofrer aos trambolhões. A ideia não me pereceu nada boa – passei a viagem quase toda a chatear a minha miuda dizendo-lhe – Vais ver que o atrelado fica pelo caminho! – ou qualquer coisa como – quando lá chegarmos voltamos para trás a pé para apanharmos a roupa! A chegada ao hotel foi normal. Ao contrário das minhas convicções, o tal do atrelado chegou intacto – mais uma das minhas espertezas. Por extraordinário que pareça, o tal casal de “pombinhos famosos” estava a chegar ao mesmo hotel que nós! Eu para me tranquilizar só dizia – pá, se eles que são famosos estão aqui é porque isto tem de ser bom, senão também não vinham não é? A desgraçada da minha miuda, que jã não me podia ouvir e queria era uma cama, ia dizendo que sim. Depois de uma soneca que durou aí umas cinco horas, acordámos com um calor húmido que deixava antever uns dias animados.


O quarto tinha uma daquelas ventoinhas no tecto, do tipo das que a malta vê nos filmes africanos, em que de vez em quando há um gajo que se pendura nelas pelo pescoço e fica alí a rodar com o barulhinho ...inhác ...inhác ...inhác – mas era limpinho e tinha quarto de banho privativo. A primeira saída para ver o Hotel foi igual a todas as restantes. Uma paisagem de facto impressionante. Exactamente como as fotografias do catálogo – praias de areia branca e sem lixo, água azul e completamente transparente e umas casinhas baixinhas que acabavam num pontão de madeira que os pescadores locais usavam, uns para descarregar e arranjar o peixe logo alí, partindo-o já às postas como iria para o prato nos hoteis e restaurantes, e outros para apanharem á cana os outros peixes que se alimentavam dos restos do arranjo dos primeiros. Um local muito calmo, com uma beleza natural indiscutível – para quem gosta de praia, porque para quem não “engraça” com praia, meu Deus, um verdadeiro inferno de areia, sol e calor. Como a viagem contemplava uma estada noutra ilha do arquipélago, mas só daí a uns dias, antes resolvemos conhecer a ilha do sal. Em conversa com o chefe de sala do hotel, um Caboverdiano genuino, foi-nos dito que a melhor forma de conhecer a ilha era alugar um carro – o início da desgraça! Pelo mapa que nos mostrou a ilha seria aí do tamanho do concelho de Loures, ainda antes da separação de Odivelas. Bem, a comparação é mesmo só no tamanho, porque em ocupação apenas três núcleos habitacionais – a capital Espargos, Palmeira e Santa Maria do Sal – esta última onde estava localizado o Hotel. Depois havia um pequeno povoado onde outrora se fazia a exploração do Sal que deu nome à ilha. O mapa tinha marcadas apenas duas estradas, que como a ilha é de forma mais ou menos rectangular, faziam uma espécie de cruz – que nem de perto nem de longe se assemelhava com a verdadeira cruz em que se viria a tornar aquela viagem. Depois de um pequeno almoço bem tomado, onde se evitavam as frutas já descascadas tal como havia dito a menina da agência – eu acho que éramos os únicos que faziamos isso, e nem assim me livrei de umas dores de barriga – lá fomos buscar a merenda que haviamos pedido ao António, o chefe de sala no dia anterior. Ele muito prestável lá nos foi dizendo que iamos gostar muito e que deveriamos aproveitar para dar uns banhos numa piscina natural com um nome perfeitamente extraordinário, que eu, juro, não percebi à primeira – Buracona! Sem palavras!


Uns minutos depois da hora marcada, lá estava o senhor da empresa de aluguer de automóveis a porta do hotel com um Jipe vermelho pequenino, de 4 lugares, ainda não muito velho. Mais à frente se perceberá a importância de referir os 4 lugares, sendo nós apenas 2. Não nos fez muitas recomendações, apenas nos disse que deveriamos deixar o carro aberto sempre que parássemos em qualquer lado, e levar conosco os nossos pertences. Segundo ele era a forma de mostrar aos possíveis ladrões que não havia nada para roubar no carro. Bom, eu confesso que achei um bocado estranho, mas como aquilo era uma ilha ainda pensei – mesmo que lhe roubem o carro para onde é que fogem? Deve ter razão. – eu não imaginava era a importância daquela “aparentemente simples” recomendação. Por volta da hora do almoço, e depois de termos já percorrido a ilha praticamente toda e parado demoradamente em todos os sítios assinalados – imaginem bem o tamanho da ilha – parámos à sombra de um barracão para comer o tal do lanchinho preparado pelo nosso amigo António – não há uma única árvore capaz de fazer sombra a um carro. Faltava ver o local mais apregoado e cujo nome jamais me esquecerei – a Buracona. Estavam aí uns 40 graus – não faz muito sentido dizer se era ao sol ou à sombra porque sombras é coisa que não se arranja nem para medir a temperatura. Sem necessidade de recorrer ao mapa para encontrar esse malfadado sítio, porque como estã bom de ver numa terra com duas estradas que se cruzam perpendicularmente, não há dúvidas – era no ponto oposto do local onde ficava o nosso hotel. No meio de uma paisagem literalmente desértica, chegamos junto a uma placa de madeira junto da qual estava estacionado um carro, que assinalava o dito lugar. De todas as vezes anteriores que parámos o carro, cumprimos sempre as instruções do homem da empresa de aluguer – carregámos a tralha nas duas mochilas e deixámos o carro aberto com vidros abertos e tudo. Em jeito de gozo até disse uma vez ou duas – mas quem é o estúpido que vem roubar aqui seja o que for, então a malta não via? Mas naquele lugar deserto, nem sei bem dizer porquê, achámos que não valeria a pena estar a levar as coisas todas porque afinal queriamos ir ao banho naquela “Buracona”, e não dava jeito nenhum irmos carregados. Pegámos nas toalhas, máquina fotográfica e aqui vamos nós. O sítio é de facto muito bonito. Resultante da erupção de um pequeno vulcão alí existente, formou uma piscina natural pelo arrefecimento súbito do magma, alimentada pela água do mar. Passámos um bom bocado ali, eu dentro de água e a miuda na margem apenas com os pés de molho – nessa altura ainda não tinha começado as aulas de natação, sim porque o casamento não traz só coisas más às mulheres como elas dizem, também traz boas.


Quando nos decidimos a ir embora, subimos a ravina e estava apenas o nosso jipezinho vermelho, sozinho...com um vidro partido! O pânico foi geral! Rapidamente percebemos que afinal naquele sítio que achávamos ermo, o pior podia acontecer – e aconteceu! Contas feitas, não tinha ficado nada. Mochilas, carteiras, estojo da máquina e até uns calções verdes de que gostava especialmente – tinha desaparecido tudo. A aflição começou a turvar os pensamentos, só pensava que estava metido numa confusão brutal – sem documentos, cartões, dinheiro, telefone ...bem, não dá para explicar! Na máxima velocidade que conseguia, começámos a andar em direcção à localidade mais próxima, mas poucos metros depois percebi que algo não estava bem com o carro. Forçado a parar, vi que um dos pneus de trás estava em baixo. Não dá para imaginar a aflição! Procurámos a chave de rodas, a roda suplente e qual não é o meu espanto quando percebo que o raio do macaco que o carro trazia não era dele – alguém tinha trocado os macacos – e em vez disso tinha um macaco de um carrinho ligeiro, tipo Renault Clio. Aí passei-me! A minha miuda, coitada, que não sabia o que fazer, lá me tentava acalmar dizendo que havia de correr tudo bem – aquelas frases que a malta diz com boa intenção quando as coisas não estão a correr bem, a ver se melhoram, mas que têm precisamente o efeito contrário. Com um esforço terrível, debaixo do sol de Cabo Verde às 3 da tarde, e depois de esgravatar na terra para arranjar meia dúzia de pedras que pudesse pôr por baixo do estúpido do macaco, lá consegui trocar o pneu e seguir viagem – as peripécias ainda nem tinham começado! Ao chegar a povoação mais próxima, Palmeira, rapidamente encontrei o posto da polícia – mais correctamente da POP: Polícia de Ordem Pública. Depois de uma entrada de rompante, e de explicar a correr as quinhentas coisas que tinha para dizer, o rapaz fardado que estava sentado numa pequena secretária de madeira, no meio da única sala do posto da POP responde com aquele típico sotaque: “Num têm meios!! Tem de ir a Espargos!” Eu não estava a acreditar. Perguntei com a voz já bastante alterada. “...mas não tem um telefone que possa ligar para Espargos e dizer que fomos assaltados?” O rapaz, exactamente com a mesma calma que usara da primeira vez, diz: “Nós só tem um rádio, mas não funciona! Tem de ir a espargos!” Saímos do Posto da POP completamente desanimados. Num ritmo bastante mais lento, continuámos a viagem até Espargos, tentando pelo caminho encontrar possíveis soluções para a montanha de problemas que nos bombardeavam o pensamento. Na chegada a Espargos, parámos o carro em frente ao “Quartel General da POP” – um edifício da década de sessenta, sem janelas nem porta, embora tivesse sido recentemente pintado de azul e branco. Fomos recebidos por um agente com uma farda verdadeiramente irrepreensível. Ao começarmos a contar o sucedido, este diz-nos que nos ia levar ao comandante. Recomecei a narrativa, tendo o Comandante ouvido atentamente tudo até ao fim. De seguida pede para descrevermos com o máximo pormenor os haveres perdidos, ao mesmo tempo que o agente que nos havia recebido tomava notas. No fim dirige-se a nós e diz que tinha conhecimento daquele problema na Buracona, e que estes acontecimentos eram frequentes. O máximo que podia fazer era mandar conosco dois agentes ao local. Bom, como se pode calcular, qualquer coisa que fizessemos que de alguma forma pudesse significar que haveriamos de encontrar algumas das nossas coisas era bem vinda. Acedemos à sua sugestão e lá fomos, eu, a minha esposa e os dois agentes da POP no “meu” jipezinho de 4 lugares. Os dois rapazes aproveitaram o caminho para nos contar que estavam há pouco tempo no Sal e que não eram dali. Tinham vindo de Santiago e ainda não conheciam muito bem a ilha - como se isso fosse possível, então nós só numa manhã tinhamos corrido a ilha toda de uma ponta à outra – enfim, não me pareceu muito a sério. Eu estava completamente passado. Só pensava na montanha de chatices que tinha arranjado com aquela viagem e com o raio do passeio de carro.


Percorridos que estavam ai dois terços do caminho, já no inicio da estrada de vários qulómetros completamente deserta até á Buracona, um dos Polícias pede para eu parar o carro. Pânico. O que é que este gajo quer aqui, pensei eu! Eu lá disse que ainda estavamos a uns dois ou três quilómetros mas eles sairam na mesma. Depois de sairem do carro, um deles vira-se para mim e diz: “Nós agora vamos a pé e vocês vão já para a Buracona e não dêem nas vistas nem falem com ninguém. Esperam lá por nós que nós já vamos lá ter.” Eu estava parvo! Nem sabia o que dizer. Assim que eles começam a andar em direcção à linha de costa, ainda a uns metros da estrada, eu comecei logo a praguejar: “De certeza que estão feitos com os ladrões, vais ver. Vão lá chegar com os documentos, sem um tostão e ainda vão dizer que tivémos muita sorte.” - A minha garota nem sabia o que dizer. Lá ia dizendo que não, que deviamos acreditar porque eles talvez soubessem o que estavam a fazer. Chegados à Buracona, com um calor de morrer, não havia ninguém, claro! Lá saímos do carro e ficámos ali bem uma meia hora a andar de um lado para o outro porque nem havia sombra, nem se podia estar dentro do carro com o calor. Ao fim deste tempo começamos a ver dois vultos ai a uns duzentos metros de distância a andar na nossa direcção. À primeira vista pensámos logo que eram os polícias que vinham sozinhos ter conosco – a ansiedade aumentava cada vez mais. Mas à medida que se aproximavam começámos a ver que um deles não tinha farda, embora fosse também africano. Eu comecei a dirigir-me para eles e de repente vejo o outro polícia a correr na minha direcção. De repente vira para o lado do mar e eu, como era de esperar vou atrás. Aí a meio da encosta o polícia apanha um rapaz de tronco nú, de calções e sandálias e começa a dirigir-se a mim. Nisto já o segundo polícia estava junto do meu carro e da minha miuda com o outro. Comecei a perguntar o que tinha acontecido mas ele foi calado até chegar junto do carro. Aí começa a dizer-me que aqueles dois miudos, que não teriam mais de catorze ou quinze anos, pertenciam a uma quadrilha de ladrões de um “bairro de chapa” – o bairro de lata lá do sítio – junto à entrada de Espargos. Diz-me então que eles tinham ajudado a fazer o assalto ao carro e que sabiam onde estavam escondidas algumas coisas. Bom, de facto eles lá foram indicar onde estavam algumas das nossas coisas, que como está bom de ver eram aquelas que não tinham qualquer valor material. Encontrámos o estojo da máquina, uma mochila com os restos do lanche dentro e nada mais. Confesso que comecei a acreditar que não recuperava mais nada. A minha teoria de que os Polícias e os Ladrões tinham um acordo tinha caído por terra. Começava-se a instalar um misto de medo, com tristeza e ao mesmo tempo alguma raiva interior pelo que tinha acontecido. - ”Bom, e agora?” – pergunto eu com um ar já muito desanimado. Um dos polícias diz-me então que iamos todos no meu carro – o tal de quatro lugares, daí aquela referência no início. Pá, eu não estava sequer preocupado em como é que eles se iam arranjar para caberem, mas uma coisa era certinha, o carro quem conduzia era eu e a minha miuda não se sentava em nenhum banco com nenhum daqueles gajos, ai disso podiam ter a certezinha absoluta. Mas nem foi preciso dizer nada, eles rapidamente entraram para a parte de trás do carro – os quatro – dando um dos polícias a ordem de partida.


No caminho lá me foi dizendo que eles são muito pobres e que muitos deles não têm trabalho, nem outras formas de poderem encontrar meios de subsistência. Eu confesso que a esta distância até reconheço tudo isso como verídico, mas naquela altura, o discurso dele estava a pôr-me ainda mais furioso. Só pensava: “Mas porque é que logo tinham de me roubar a mim, pá! Não podiam ter escolhido outro gajo qualquer?” A algumas centenas de metros antes de entrarmos no meio das casas, um dos polícias diz-me que iamos ao bairro de chapa buscar o mandante da quadrilha e tentar recuperar as nossas coisas. Eu fiquei radiante. Não tinha percebido até aí o porquê de termos vindo por um caminho diferente mas não sei muito bem como nem porquê, aquele pedido fez-me todo o sentido. Estavamos a caminhar para se fazer justiça e era isso o que eu mais queria naquele momento. Assim que nos aproximamos de uma das barracas, numa de muitas ruelas do bairro, os polícias mandam-me parar o carro e empurrando a minha miuda para a frente com toda a velocidade, saem a correr do carro e entram numa porta, que na prática era um pano pendurado. Eu saí do carro e logo pensei que os dois rapazes que tinham ficado dentro do carro se iam escapar! Enganei-me redondamente. Aqueles dois desgraçados ficaram exactamente onde estavam antes de os polícias sairem do carro. Acho mesmo até que nem se atreveram a instalar-se mais “à larga”. Poucos minutos depois, antecedidos de uma gritaria infernal, saem “pano fora” os polícias, agarrando um outro rapaz pelos calções – diga-se que era a única peça de roupa que tinha vestida – seguidos logo de outros dois e de duas mulheres, uma delas grávida aí de uns sete ou oito meses. Comecei a ficar assustado. O Ambiente começa a ficar deveras pesado e nesse momento confesso que me arrependi de ter entrado naquela loucura. Apenas um dos polícias estava armado, empunhando a arma encostada à cabeça do tal rapaz e gritando um chorrilho de coisas que eu como se calcula, não conseguia perceber. Ao seu redor, as mulheres gritando e puxando a camisa do outro polícia tentavam que o inevitável acontecesse – que prendessem o rapaz. Subitamente, dou conta que estavamos completamente rodeados de habitantes do bairro, que assistiam à acesa discussão entre os polícias, o mandante da quadrilha e as mulheres, e se aproximavam cada vez mais de nós, que tinhamos ficado a alguns metros do “palco principal do espectáculo”. Um deles em tom claramente provocatório, começa a gritar uma série de coisas para nós – “Vocês são uns bandidos, vêm para cá só nos fazer mal, deviam era morrer, não saem daqui vivos hoje...” Com um grito disse à minha miuda que entrasse para o carro e comecei a chamar pelos polícias. Estava completamente em pânico. Em alguns segundos, e sem ter de disparar um tiro sequer, os polícias tinham conseguido arrastar o tipo até ao carro e fazê-lo entrar para o banco de trás. É ai que um dos polícias põe um dos putos fora do carro e lhe diz qualquer coisa que não percebi na altura. Entraram depois para o carro e no meio da confusão arranquei a toda a velocidade por entre uma multidão de gente sem sequer saber como saía dalí. Com a ajuda dos polícias lá consegui entrar numa estrada de alcatrão que nos levaria até ao Quartel General da POP. Ao chegar perguntei a um dos polícias pelo puto que tinham posto fora do carro, ao que ele me responde que lhe tinha dito para vir ali ter a pé. Eu nem liguei, confesso. Achei que o puto nunca mais apareceria. Entrámos todos de rompante pelo gabinete do Comandante adentro. Um outro polícia que estava já na esquadra, pede-nos para sairmos daquela sala e esperar numa outra do outro lado do átrio. Aparentemente ia começar o interrogatório e nós não poderiamos assistir. A sala de espera do Quartel para além de, tal como o resto não ter portas nem janelas, tinha apenas um conjunto de sofás de cetim vermelho, daqueles que vemos ainda nalgumas salas de quartéis militares portugueses, que mostravam claramente muito uso ao longo de muitos anos. Mas os sofás não faziam de facto a menor diferença porque nenhum de nós os dois se conseguia sentar. Aliás, não conseguiamos mesmo parar de andar de um lado para o outro e dizer coisas sem sentido, depois da descarga de adrenalina que tinhamos tido uns minutos antes.


A inexistência de portas no interior do edifício não seria por si só digna de especial referência, até porque o calor arrasador que se faz sentir naquela terra as dispensa bem, mas este facto fez toda a diferença nos dez minutos que se seguiram, que sem hipocrisia a nós nos pareceram horas. Primeiro com mais algum intervalo e depois de forma continua, começámos a ouvir gritos e sons de pancadaria verdadeiramente brutal. Os gritos eram horríveis e nem um nem outro conseguiu ficar indiferente. Dirigimo-nos para a porta da sala do comandante mas um dos polícias rapidamente nos levou de volta à sala de espera dizendo com um ar ameaçador que não poderiamos sair dalí. Eu ainda tentei dizer que não era preciso baterem no rapaz, mas ele já não estava ali para ouvir, tinha virado costas e voltado para a sala de tortura. A minha namorada não conseguiu conter as lágrimas e eu não me consegui aguentar mais tempo na sala de espera – saí para o átrio principal e nesse mesmo momento vejo sair da sala de tortura o coitado do rapaz, cheio de marcas e ainda com sangue a sair-lhe do nariz, de mãos algemadas atrás das costas com um polícia de cada lado. Um outro polícia dirige-se a mim e diz-me com um ar irritantemente satisfeito – “Não se preocupa, nós vai recuperar tudo, ele já confessou!” Eu não sabia o que dizer ou sentir. Toda aquela cena de brutalidade, o ar violento e ameaçador dos polícias e a imagem de sofrimento literalmente estampada no rosto do rapaz, deixaram-me sem forças para reagir. Ao vê-los entrar no jipe da polícia e sair, agarrei-me à minha namorada e começamos ambos a chorar. Depois de alguns minutos e com um pouco mais de calma, voltámos a entrar na sala de espera e sentámo-nos, onde estivemos mais de uma hora sem trocar uma única palavra. Ao ouvir chegar um carro dirijo-me para a porta. Entra então um outro polícia que não tinha visto até ali, acompanhado de uma mulher com uma criança ao colo. Nisto ele saca de uma nota de cem dólares e diz-me – “Aqui está a sua nota, ele já tinha ido a casa desta mulher trocar o dinheiro.”. Como se calcula, não respondi uma palavra. Algum tempo depois estava de regresso o jipe com os polícias e o rapaz. Eu dirijo-e a eles mas sou de novo obrigado a voltar á sala de espera. Passado algum tempo somos chamados a entrar na sala que é do comandante mas que só me apetece chamar de sala de tortura, onde num canto estava sentado num banco de madeira o rapaz, cujo nome nunca cheguei a saber. Na sua secretária, o comandante mexia num molho de papeis. Fomos convidados a sentar-nos, convite que declinei energicamente. Antes de entrar na sala, vi com espanto sentado num banco corrido ao lado do rapaz que haviamos trazido connosco no carro, o outro que deixámos no bairro de chapa. Imaginei logo o que o polícia não lhe terá dito para ele ali estar. O comandante começa então a ler a lista de bens desaparecidos que haviamos feito horas antes. À medida que o comandante ia avançando na lista, um outro polícia ia dizendo se o bem tinha ou não sido encontrado. Quase tudo tinha aparecido. Apenas o meu BI e os calções não tinham sido encontrados. Também um conjunto de coisas que aparentemente tinham sido encontradas na casa do rapaz tinham sido trazidas, embora não nos pertencessem. Depois da lista completa e de algumas formalidades, o Comandante levanta-se e estende-me a mão dizendo – “Muito obrigado pela sua colaboração. Conseguimos resolver um problema que há muito complicava a vida dos turistas na ilha e que já envergonhava a polícia. Pode ir.” A única coisa que consegui responder foi – “Eu é que agradeço! Adeus.”


Ao sair, olhei uma última vez para o rapaz, sentado no banco ao canto da sala, de mãos algemadas e olhos fitos no chão e senti um aperto no coração e uma vergonha tão grande, que não sei se alguma vez conseguirei explicar. Hoje, passados estes anos, vejo como é injusta a vida daquelas pessoas, a quem falta quase tudo, sem sequer terem a possibilidade de trabalhar por uma vida melhor. Pessoas que ao mesmo tempo que lutam pelo seu lugar na terra, são rodeados de afortunados a quem uns calções ou uns cartões de plástico e umas notas não fariam a menor diferença, mas a quem o sistema protege. Ao contrário dos seus próprios filhos, a quem nada ou quase nada é dado. Foi uma viagem inesquecível...!!!

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