terça-feira, 29 de maio de 2007

A Ponte Chelas-Barreiro não deve ser Rodo-Ferroviária? E depois digam que eu tenho a mania da perseguição…


Artigo Publicado em 29 de Maio de 2007


Já há uns tempos que eu andava para tentar perceber se conseguia adivinhar ou não qual era a orientação do Governo em relação à ponte Chelas-Barreiro. Umas vezes tinha a impressão que estavam mais inclinados para comboios e carros, outras parecia-me que só lá íamos de comboio. Quando fui há umas semanas a Almada, a uma iniciativa do DN onde interveio a Sr.ª Secretária de Estado dos Transportes, acabei por ouvi-la proferir um argumento que me ficou na memória, em especial porque – não me considerando eu muito burro (justa ou injustamente) – não consegui perceber à primeira o seu real significado. Disse então a Dr.ª Ana Paula Vitorino que uma das razões pelas quais o Governo estava mais inclinado para uma ponte só ferroviária, era o cumprimento das metas de Quioto. Ora a primeira leitura é directa e a malta “engole” sem pestanejar – andar de transportes públicos polui menos e emite menos CO2, por isso este argumento é muito bom e eles estão a preparar-se para decidir bem. Mas como nem tudo o que parece é, eu fiquei a pensar naquilo. E como gosto de ocupar o tempo com coisas úteis, resolvi usar algum desse tempo a tentar criar cenários alternativos das duas hipóteses, pensando também nas preocupações de Quioto e das alterações climáticas, tal como a Sr.ª Secretária de Estado.

Olhando para a Área Metropolitana de Lisboa, e quando se discute uma coisa tão cara como uma ponte, num país “nas lonas” como o nosso, toda a gente dirá que o número de factores a considerar é grande. E eu também! Mas não me parece muito útil, nem estou sequer preocupado em escrever longamente sobre aquelas coisas todas que os tais especialistas que vão custar 18 milhões de Euros à malta (segundo o DN de 07/03/2007) em estudos, também se vão debruçar. Estou mais interessado em perceber se o Barreiro vai dar o tal contributo para Quioto abdicando da Rodovia na ponte, e se isso é mesmo verdade, e ainda se é justo que seja assim.

O estado da mobilidade da AML é uma desgraça. Não é filme nenhum, é a constatação dos factos. Lisboa é um pólo agregador, recebe montanhas de carros por dia e as consequências disso são do pior. Uma consequência que se percebe bem é a Avenida da Liberdade ser garantidamente o sítio mais poluído do país, em termos de qualidade do ar, devido ao tráfego automóvel. Isto diz o Instituto do Ambiente, não sou eu. Com um cenário destes, não é de estranhar que toda a gente reivindique medidas, e que o discurso do uso dos transportes públicos passe bem – embora os números da sua utilização fiquem muito aquém do desejado. Falar de mais estradas e mais ainda uma nova ponte para carros dá logo para ver que é polémico e por isso, quando confrontados com a preocupação expressa pela Sr.ª Secretária de Estado, somos levados a reconhecer logo alguma razão. Porém, gostava que me acompanhassem numa outra reflexão.

Permito-me dividir esta questão da ponte em três questões distintas: a coesão territorial da Área Metropolitana de Lisboa; a equidade de modos de transporte e a sua contribuição para o equilíbrio económico dos diferentes territórios que compõem a AML, e por último a estratégia de mobilidade da AML e a sua influência nos compromissos de Quioto/alterações climáticas.

1 – Coesão territorial da AML

Um território coeso é um território em que as inter-relações são equilibradas e em que ele se pode considerar internamente homogéneo. Trocado por miúdos isto quer dizer que nesse território não se encontram diferenças significativas, qualquer que seja o critério que se escolha para analisar. A AML está longe de cumprir este requisito. As diferenças são fortes e bem marcadas, com áreas votadas a uma insularidade preocupante, com áreas exclusivamente dependentes de fenómenos pendulares e uma forte assimetria na distribuição da riqueza e do emprego. As consequências directas deste cenário são conhecidas e vão desde a desvalorização do espaço até à sua excessiva exploração, o aumento significativo da intensidade de transporte ou da intensidade energética. A mobilidade é aqui um factor preponderante, uma vez que condiciona este equilíbrio territorial. É por isso urgente que um dos objectivos estratégicos para a AML passe por um plano de mobilidade metropolitano, que inverta este cenário assimétrico. Claramente há aqui um papel preponderante que está por assumir – a Autoridade Metropolitana de Transportes.

2 – Equidade dos modos de transporte

Num território que se quer coeso, é fundamental como já referi, que as suas condições de base tenham uma distribuição equilibrada. Quando se fala de modos de transporte, será natural que se exija um tratamento equitativo em matéria de investimento e diversidade de modos transporte para todos os territórios da AML. Falo de condições para a rodovia e para a ferrovia, mas naturalmente também para o tráfego fluvial. Transportar passageiros e carga em iguais circunstâncias e garantir as mesmas acessibilidades aos diferentes territórios é absolutamente fundamental para fomentar a coesão territorial e o seu equilíbrio económico, social e ambiental. O transporte é hoje um elemento-chave do nosso ciclo económico e condiciona de forma determinante o sucesso de muitos investimentos. Locais acessíveis são mais competitivos e por isso alvo de maiores interesses, em detrimento de locais isolados e de difícil acesso – esses estarão votados ao esquecimento. Quando se discutem diferentes opções de acessibilidade, num território como a AML, é preciso atender à situação actual. A sul, as acessibilidades estão polarizadas por duas pontes, sendo uma apenas rodoviária, contando com um modo fluvial que embora diversificado e alvo de investimentos recentes de modernização, perde diariamente passageiros de forma preocupante, e de um investimento ainda muito atrasado e sem resultados à vista – o Metro Sul do Tejo – que se espera vir contribuir para alguma coesão e melhoria de acessibilidade de uma parte desta área sul. A norte essa polarização é imperceptível, com investimentos avultados em reforço das condições de acessibilidade – veja-se os exemplos do alargamento do IC 19, CRIL, CREL, A5 – ao mesmo tempo que se investiu fortemente na extensão do Metropolitano, chegando já hoje à malha urbana mais densa englobada na AML. Esta assimetria tem como consequência um desenvolvimento assimétrico que urge contrariar, na busca da já referida coesão.

3 – A Mobilidade na AML e os Compromissos de Quioto

Conferir sustentabilidade a um território que parte de uma situação desfavorável em termos de desenvolvimento económico, social e ambiental é uma tarefa difícil – isto quer dizer que muito está ainda por fazer. O sucesso do trabalho que os decisores têm pela frente começa pela forma como conseguirem motivar os cidadãos para fazerem parte de uma solução que lhes será favorável. Muitas têm sido as estratégias adoptadas pelo mundo fora para intervir na mobilidade das cidades, tentando contrariar o fenómeno do automóvel e as consequências da sua excessiva utilização em meio urbano. Medidas como a implementação de sistemas de portagens, diferenciação de números de matrículas entre pares e ímpares, com entrada permitida alternada nas cidades, limitação de zonas de acesso exclusivo a moradores e outras, têm sido experimentadas um pouco por todo o mundo moderno. Londres, Atenas, Paris, Amesterdão ou Barcelona adoptaram já medidas de carácter permanente que visam desincentivar o uso de transporte próprio, promovendo o uso de transporte público e melhorando a circulação de mercadorias e serviços, com ganhos económicos, sociais e ambientais – visando uma estratégia de sustentabilidade. A AML terá também de enveredar por soluções que passem por desincentivar o uso transporte privado, fomentar o uso dos modos públicos de transporte e com isso contribuir também para um melhor desempenho ambiental.

Ora então o que é que eu concluo desta reflexão?

1 – Um território só é coeso se for tratado de forma equitativa e tiver as mesmas condições de partida. Isso não se passa hoje na AML.
2 – Garantir acessibilidades de forma idêntica ao território como um todo, é um passo indispensável para garantir a sua sustentabilidade.
3 – As medidas necessárias e urgentes a tomar na AML que visam o cumprimento de Quioto e a intervenção concertada para que se possam minimizar os efeitos nas alterações climáticas, devem ser tomadas de forma equilibrada e com critérios idênticos do ponto de vista territorial. Todos os territórios da AML devem contribuir para este objectivo de igual forma.

E portanto, se eu pudesse dirigir-me à Sr.ª Secretária de Estado dos Transportes, dir-lhe-ia que já percebi o que ela quis dizer quando se mostrou preocupada com a opção rodoviária da Ponte Chelas-Barreiro. É que o Barreiro está mais uma vez a ser chamado a contribuir para o interesse nacional, abdicando de se tornar um território coeso e assumir o papel efectivo de parte integrante da AML, porque é preciso evitar que entrem mais carros em Lisboa, e porque também é preciso que se cumpra Quioto não aumentando as emissões de CO2 – ou seja, para o Barreiro só ponte ferroviária.

Mas eu dir-lhe-ia também que não concordo nada com isso. Porque se é preciso cumprir Quioto, e porque se é preciso retirar carros de Lisboa, então sim Senhora, o Barreiro está disponível para dar O MESMO contributo que os restantes territórios da AML. Pagará as mesmas portagens que forem fixadas para todas as entradas de Lisboa, ou levará os carros que puderem entrar nos dias que forem fixados, ou terá acesso apenas nas horas que forem para isso destinadas – mas não abdica de ser tratado da mesma forma que todos os outros territórios. Quer poder cumprir os mesmos deveres, usufruindo dos mesmos direitos. Só assim estaremos a defender uma estratégia séria de desenvolvimento sustentável para a AML, que crie um território coeso socialmente justo.