segunda-feira, 1 de março de 2004

A Carta Anónima

Sentado num banco de madeira, dentro de uma pequena sala de espera destinada a testemunhas de defesa, comecei a pensar no que poderia dizer do meu amigo, que me havia arrolado como sua testemunha. Comecei por tentar estruturar as ideias sobre a forma como o conheci, preocupado pelo facto de ter de explicar à Dr.ª Juíza as coisas como elas são. Lembrei-me então dos tempos em que comecei a fazer no Estuário do Sado as saídas de fim de semana, em que andavamos muitos quilómetros a pé, coisa que agora infelizmente já não faço, observando e registando todas as informações relevantes sobre a panóplia de espécies de aves que avistavamos ou ouviamos. Sim, porque não é necessário ver um melro ou um rouxinol para detectar a sua presença. Eles anunciam-se pelo melodioso canto com que nos recebem. Eram dias compridos e muitas vezes cansativos, em que se comia quando se tinha fome, entre passos, paragens e escritas, se falava de coisas sérias e a brincar e se ia, pouco a pouco, retratando no papel a vida daqueles campos. Um grupo pequeno, que de quando em vez se tornava maior, calcorreou a passos pequenos, terras e lamaçais durante dias a fio. Uma boa parte desses passos foram dados dentro de uma quinta, que com o nome de herdade dado por uma conífera, encerrava livremente as mais diferentes e cativantes formas de vida. Desde os pombos aos cavalos, passando pelas águias, garças e alfaiates, até duas espécies muito conhecidas de mamíferos, porém só distinguidas pelos habitantes da quinta, o texugo-porco e o texugo-cão.

A quinta era habitada por mais de uma centena de pessoas, que embora muitas delas delas já não desempenhando lá qualquer tarefa agrícola ou florestal, deram a sua vida pela casa que lhes coube para acabar os seus dias, na qual muitas nasceram e sempre aí viveram, e por meia duzia de moedas com que pagavam ao Manel os carapaus e as sardinhas. As casas distavam da estrada de alcatrão uns duros e esburacados quinze quilómetros, que só as paisagens profundas e resplandescentes, animadas de cruzamentos fugazes com os habitantes selvagens da quinta conseguiam torná-los mais curtos. À chegada, uma comissão permanente de boas vindas nomeada propositadamente para o efeito, latia durante uns breves minutos anunciando a nossa ousadia, de invadir tão calmo e quieto lugar. Nunca nos demoravamos muito tempo no casario. O nosso interesse era claro e objectivo: quanto mais tempo perdessemos, menos teriamos para contar e sobre o que escrever. Depressa nos dirigiamos à casa do meu amigo, fazendo calorosamente as saudações à rude mas carinhosa família, que já nos recebia como amigos, fazendo-nos sentir quase que como em casa. Deixando o nosso velho carro à sua porta, subiamos para a caixa da sua “pick up” branca e lá iamos até ao local de pernoita, no limite exterior da quinta, junto a um porto palafita na margem direita do Sado. Vezes sem conta este caminho se repetiu, com mais ou menos sol, por vezes alguma chuva, e sempre com o mesmo sorriso, o meu amigo nos levava e trazia à hora combinada. Esta coisa da hora combinada é hoje coisa do passado, os telemóveis vieram deitar fora a sua utilidade – liga-se e diz-se “Vem-nos buscar!” – bons tempos! Algumas noites eram mais animadas! Por vezes lá pediamos, com alguma vergonha mas com muita vontade, que nos viesse buscar à nossa “aldeia” de PVC e alumínio depois da hora do jantar – que por lá era pouco depois do pôr do sol – para podermos jogar matraquilhos na colectividade onde os homens da quinta matavam os tempos livres. A colectividade ficava mesmo ao lado da casa dos donos da quinta, que à altura não a habitavam. Um seu administrador tinha o previlégio de o fazer, embora nunca dele tivessemos dado conta, apenas ouvido falar – e bem, diga-se em abono da verdade. Eram momentos engraçados, onde nos recebiam com a amabilidade da realeza, mas com a simplicidade ruderal que nos punha à vontade para falarmos e respondermos às perguntas mais incómodas. Até dava para entrar nalgumas teimas sobre as diferenças para eles tão perceptíveis, mas para nós inexistentes, entre o já falado texugo-porco e o texugo-cão. Nunca demoravamos muito, pois o acordar era para todos bem cedo, incluindo para o meu amigo, o nosso “motorista” voluntário.
Quis o destino que fosse parar um dia, com a necessidade de completar a minha formação académica, ao local onde o meu amigo trabalhava há mais de quinze anos. Por lá andei, mais ou menos misturado com os restantes membros daquela casa, durante cerca de um ano ao longo do qual fui fazendo novas amizades e solidificando algumas já anteriores. Em muitas tardes passeavamos de barco, algumas vezes só para contar roazes, outras porque um ou outro navio mais irresponsável lavava os tanques de carga, deitando para o rio os restos do veneno que carrega nas suas voltas pelo mundo. Findo o meu período probatório, lá concluí o percurso. Por razões pouco importantes, ficou vago um lugar de trabalho na área da minha formação, pouco tempo depois de terminar a minha tarefa, precisamente no lugar onde tinha estado. É então que o meu amigo, junto de outro amigo que fora meu colega e com quem eu muito tinha aprendido, sugere que me contratassem para o lugar vago. Depressa fui contactado, tendo aceite desde logo com um sorriso de orelha a orelha, como poderão facilmente imaginar. Durante vários anos depois desse dia, tive a felicidade de trabalhar integrado numa equipa muito rica em conhecimento e valores humanos, e que por isso moldou definitivamente a minha personalidade, da qual fazia parte também o meu velho amigo. Foram tempos em que rimos, tivemos zangas mais ou menos sérias, comemos e bebemos, corremos, navegámos, e até chorámos no momento em que sem querer, tive de me vir embora! Ficou a saudade e a ligação forte, de pessoas que aprenderam a ser mais felizes por estarem juntas e por poderem partilhar os sentimentos, bons e maus, nos momentos mais fáceis e nos mais difíceis. Pessoas de grande força de vontade e com um carácter que se mostrava dia-a-dia, à mercê de todos quantos com eles conviviam. Aprendi muito, de conhecimento e de valor humano – da vida! Da quinta, hoje só de longe em longe ouço falar. Parece que a comissão de boas vindas foi destituida. Em vez dela uma outra foi nomeada, mas agora os sons são outros, mais fortes e assustadores - parece que saem de canos de ferro a toda a velocidade, e dizem que a comissão já não é de boas vindas. O portão foi arranjado e já fecha. Por vezes não abre! Os donos sabe-se afinal quem são, e conta-se à boca pequena que as casas afinal não são para acabar os dias, são os dias que se estão a acabar nas casas. Da mais de uma centena de habitantes da quinta, muitos vieram conhecer a cidade – e ficaram! Parece que já não podiam voltar. O Manel ainda leva os carapaus e as sardinhas, mas a mesa de matraquilhos já lá não está.

É isto que quero contar à Dr.ª Juíza. Provavelmente não terei tempo. Mas, e como sinto que não vou conseguir, terminarei dizendo que o meu amigo é um velho amigo! E que tanto é meu amigo, como de todos aqueles que quiserem ser seus amigos, porque se outros motivos não houvesse, no tempo em que a quinta era a quinta que eu conheci, havia uma regra de ouro - todos aprendiam a ser amigos. E tal como ele aprendeu, também a mim me ensinou!

Perguntar-se-ão certamente porque começa este texto com o título “Carta Anónima”. Muitas explicações poderiam ser dadas – e algumas fazem falta – para ajudar a perceber. Mas afinal parece que tal como o que eu aqui escrevi nada tem a haver com uma carta anónima, também a razão da minha vinda a tribunal não teve. Teve curiosamente a haver sim, tal como a razão que explica este texto, com relações entre pessoas. Só que no caso da carta anónima, a razão é precisamente a sua inexistência. Infelizmente...

I-III-IV
Nuno Banza